Por Gildo Gomes
Daqui
a três anos os evangélicos do mundo inteiro celebrarão os 500 anos da Reforma
Protestante embora muitos estejam distantes do legado e teologia reformada.
Infelizmente o dia 31 de outubro é comumente conhecido como o “Dia das Bruxas”
e nos Estados Unidos até mesmo autoridades políticas vestem-se de modo
apropriado aos festejos da época. Exemplo disso foi o vice-presidente Albert
Gore e sua esposa fantasiados de múmias no halloween de 2000. Entre os poucos
anos que os americanos não conseguiram comemorar a bruxaria, 2012 foi um deles
devido o furacão Sandy que obrigou a cancelar a tradicional parada das bruxas
em Nova York. Aqui no Brasil com o objetivo de afastar a influência
estadunidense e resgatar o folclore brasileiro, vários municípios como Vitória (Espírito
Santo); Poços de Caldas e Ubureba (Minas Gerais); e Fortaleza e Independência (Ceará)
já oficializaram a data de 31 de outubro como o Dia do Saci. É uma mudança da
bruxaria-Wicca para as diabruras-Pererê. Mas nenhuma dessas comemorações
culturais fantasiosas podem ofuscar um dos fatos histórico-religioso mais
importante do mundo, ocorrido nesse mesmo dia no ano de 1517 na Alemanha. Refiro-me
a Reforma Protestante, cuja data de 31 de outubro, um dia antes do Dia de Todos
os Santos e do Dia de Finados, lembra a fixação das Noventa e Cinco Teses por
Martinho Lutero no portão da igreja do castelo de Wittenberg. Apesar de serrem
conhecidas popularmente como 95 teses seu verdadeiro nome era Debate para o esclarecimento do valor das
indulgências. É comum nessa data alguns alemães colocarem fotos de Lutero
com um cisne como pano de fundo numa homenagem ao reformador. O cisne é uma
referência ao que disse o boêmio John Huss que viveu antes de Lutero. Huss e
seus livros foram queimado pela Igreja Católica em 6 de Julho de 1415. Uma
tradição afirma que em sua cela, pouco antes de morrer ele havia escrito: “Hoje, vocês irão queimar um ganso (o significado
de “Hus” na língua tcheca); porém, daqui a cem anos, vocês irão escutar um
cisne cantando. Vocês não irão queimá-lo, mas terão de ouvi-lo”. Até hoje essa mensagem de Huss é vista como uma
profecia, pois mais de cem anos depois de sua morte, à Igreja Católica e toda a
Europa ouviu o cisne cantar. O próprio Lutero em seu tempo foi acusado de ser
um hussita e numa carta para Espalatino expressou: “Sem suspeitar, ensinei a doutrina de João Hus. Então Staupitz é
hussita. Agostinho e São Paulo são hussitas. Não sei o que pensar quando vejo a
verdade evangélica queimada e condenada há séculos sem que ninguém tome a
defesa...”[1]. Semelhante ao apóstolo Paulo, Lutero colocou o mundo de
cabeça para baixo e revolucionou sua época não por uma mensagem nova, mas
simplesmente conclamando os cristãos ao retorno do autêntico evangelho. Lutero
não era um revolucionário ou restauracionista e por isso não concordava que os
cristãos protestantes fossem chamados de luteranos. Afinal ele cria numa
“igreja santa, católica e apostólica”. A mudança de perspectiva teológica de
Lutero veio com o estudo da epístola de Paulo aos Romanos que similar a uma
espada, quebrou suas correntes. A mesma epístola que no 4º século despertou o
interesse de Santo Agostinho, o patrono de sua ordem, quando as crianças
cantavam: “Tolle lege, tolle lege”,
que significa: “pegue e leia”. Agostinho leu Romanos e sua vida mudou para
sempre e com Lutero se deu o mesmo. A mensagem da doutrina da justificação por
fé somente tão clara e sistematicamente exposta pelo apóstolo, tornou-se tão
marcante na vida de Martim Luder que passou a assinar seu nome após 1518 como
Martinho Lutero, pois na língua grega eleutheros,
quer dizer liberto [2]. Mas, afinal o que aconteceu na época de Lutero? Os
historiadores geralmente explicam a Reforma Protestante do século XVI
descrevendo seus dois grandes princípios: o
sola fide – a doutrina da salvação pela fé somente que foi sua causa
material; e o sola Scriptura – a
doutrina da autoridade única e absoluta da Bíblia como sua causa formal.
Nesse tempo os abusos do
papa Leão X e a venda das indulgências para a construção da Basílica de São
Pedro, motivou Lutero a se posicionar sobre os acontecimentos e assim escreveu
suas proposições para o debate. Nelas ele denunciava as irregularidades e
mostrava a fundamentação bíblica do verdadeiro arrependimento. Lutero não
queria dividir a igreja, mas reformá-la por dentro o que se tornou impossível
na medida que o embate continuava. A bula de excomunhão, foi emitida pelo papa
e comparava Lutero a uma raposa que entrou na vinha do Senhor e deveria ser
detido. Cerca de quatorze de suas teses foram condenadas e seus livros
queimados publicamente. A resposta de Lutero a bula foi enérgica. Convocou a
juventude universitária e jogou a bula na fogueira, exclamando: “Por teres entristecido o Santo de Deus [referindo-se
a Jesus e não a ele], consuma-te o fogo
eterno”[3]. Não havia mais volta e o desenrolar da história já sabemos:
desenvolvimento, divisões e avanços do protestantismo na Europa e no mundo com
a consequente reação do catolicismo. A Igreja Católica respondeu com a
Contrarreforma, e através do Concílio de Trento, reestabeleceu a Santa
Inquisição; criou a Companhia de Jesus (os jesuítas); e uma lista de livros
proibidos (Index). Os desdobramentos dessa discordância religiosa resultaram em
terríveis consequências no decorrer dos anos. Basta citar, por exemplo, que os
primeiros missionários protestantes enviados ao Brasil foram martirizados. E
mesmo depois de tantos anos com a simbólica assinatura de luteranos e católicos
da Declaração Conjunto sobre a Justificação entre católicos e protestantes na
data de 31 de outubro de 1999, as diferenças persistem. E isso porque a
distância teológica entre católicos e evangélicos desde a Reforma Protestante é
a mesma entre a terra e o sol. É a distância entre a salvação pela fé com as
obras num esforço humano de chegar a Deus pelos sacramentos e a salvação pela
fé somente com base no exclusivo, perfeito e definitivo sacrifício de Cristo no
calvário. Tente misturar água e óleo e será algo similar a juntar os conceitos
e doutrinas católicas e protestantes. Simplesmente se excluem mutuamente. A
Igreja Católica paganizou-se e no tempo de Lutero chegou ao cúmulo dos absurdos
de Tetzel em vender terrenos no céu a mando do papa. Mas a igreja evangélica quase
cinco séculos depois caminha na mesma direção e como seria bom se os
evangélicos escutassem as sábias palavras de Dom Angélico Sândalo Bernardino,
bispo católico da diocese de Blumenau,em Santa Catarina, que disse certa vez: “Se a igreja protestante brasileira
deixar de pregar o evangelho da porta estreita, deixar de ensinar as Escrituras
Sagradas, deixar de condenar o pecado, deixar de exigir autenticidade, deixar
de encorajar a prática diária da leitura da Bíblia e da oração, deixar de
valorizar o testemunho de seus membros no meio da sociedade, deixar de lado a
importância e a necessidade de cada fiel dizer não à sua natureza pecaminosa,
deixar de condenar a soberba e a segurança própria, deixar de valorizar mais a
qualidade do que a quantidade, deixar em segundo plano o pleno exercício do
amor, deixar de gerar alegria e entusiasmo em seus fiéis e deixar de proclamar
a volta de Jesus em poder e glória ela será obrigada, mais cedo ou mais tarde,
a se lastimar profundamente à semelhança de alguns líderes do maior contingente
católico do mundo”[4]. Quase cai da cadeira quando li pela primeira vez
essas palavras de um bispo católico. Acertou bem no meio do estômago
evangélico. Enquanto Lutero anunciou a loucura do evangelho, hoje se ver a
loucura de muitos evangélicos em busca de dinheiro, poder e fama. Precisamos de
outro Lutero e de uma outra Reforma na igreja evangélica brasileira já.
Mas
outubro é também o mês das crianças e dos professores e Lutero tem muito a ver
com tudo isso. Afinal foi ele quem enfatizou o ensino e o cântico
congregacional com a participação das crianças numa época em que os pequenos
eram esquecidos. E muitas igrejas evangélicas da atualidade agem como se as
crianças não existissem e as deixam a mercê da própria sorte numa sociedade
totalmente corrompida pelo crime, roubo, drogas, prostituição virtual e real,
homossexualismo, filosofias ateístas e imorais, sensualidade e decadência
familiar. Ora, uma igreja que se encurva diante do deus Mamon certamente não
enxergará as crianças, pois elas não produzem os lucros aos discípulos da
teologia da prosperidade ávidos pelos investimentos de retorno rápido no
mercado religioso. E nessa ótica capitalista os adultos serão sempre os alvos
da propaganda e ações eclesiásticas egoístas. A importância que Lutero dava as
crianças era tão grande que em 1537 chegou a frisar que nenhum de seus livros
merecia preservação a não ser a obra “Nascido Escravo” e o “Catecismo para as
Crianças” [5]. Lembre-se que Lutero escreveu um catecismo mais volumoso para os
pastores, porém menciona o catecismo aos infantes como um dos seus escritos
mais importantes para a posteridade. Esse era o gigante Lutero de uma estatura
espiritual tão grande que não se esquecia dos pequeninos. E isso fazia dele um
mestre mais excelente ainda.
Em
outubro os professores são homenageados e mais uma vez a figura de Lutero se
destaca no seu papel de educador. Afinal a ideia que temos hoje de uma escola pública
dividida em ensino fundamental, médio e superior nasceu do projeto educacional
do nobre reformador alemão. Isso mesmo, Lutero dizia que “a maior força de uma cidade é ter muitos cidadãos instruídos”[6] Ainda
hoje países onde o protestantismo penetrou percebe-se a elevação educacional ampla
e acessível para todos. O próprio Lutero era um homem da palavra e diariamente
comprometido com o ensino do povo cristão. A agenda semanal de Martinho Lutero deixa
hoje qualquer docente ou teólogo-mestre envergonhado. Se não veja: no domingo,
às 5 hs Lutero pregava nas epístolas paulinas; às 9 hs, pregava nos evangelhos;
e à tarde no catecismo; nas segundas e terças-feiras, pregava no catecismo; na
quarta-feira, o ensino do evangelho de Mateus; e na quinta e na sexta-feira,
ensinava nas epístolas gerais [7]. A maioria dos pastores hoje leem pouco, estudam
mais pouco ainda e pregam sermões entediantes e superficiais. Não se preocupam
com o que as pessoas creem. Basta serem ofertantes e dizimistas e somente por
isso serão considerados verdadeiros cristãos. E apesar de elogiarem Lutero
estão longe das suas atitudes e ensino. Em pleno século XXI certos evangélicos
ainda são contrários ao conhecimento, alegando que a “letra mata” e com isso
acabam por dizer que a ignorância gera vida. Lutero teve uma próspera carreira
acadêmica: foi ordenado sacerdote em 1507 entrando na ordem agostiniana,
estudou filosofia na Universidade de Erfurt, doutorou-se em teologia e lecionou
como professor em Wittemberg. Recebeu o grau de mestre em artes. Estudou
línguas, gramática, retórica, história natural e astronomia sem contar seu
gosto pela música que o levou a aprender a tocar alaúde. Um homem com grande
dádivas de Deus e que soube usá-las para a Glória do Senhor. Aliás, esse foi um
dos brados da Reforma: Soli Deo Gloria
– Somente a Deus a Glória.
BIBLIOGRAFIA
[1] SAUSSURE, A. de. Lutero. 1ª ed. São Paulo: Editora Vida, 2003. p 55
[2] LUTERO, Martinho.
Do Cativeiro Babilônico da Igreja, 1ª
ed. São Paulo: Editora Martim Claret, 2008. p 13
[3] SAUSSURE, A. de. Lutero. 1ª ed. São Paulo: Editora Vida,
2003. p 61
[4] ICP, Revista
Defesa da Fé. Edição nº 76 p.55
[5] SAUSSURE, A. de. Lutero. 1ª ed. São Paulo: Editora Vida,
2003. p 108
[6] Revista Nova Escola, Edição Especial nº 10, vol II, agosto de 2006.
[7] FERREIRA, Franklin. Servos de Deus. 1ª ed. São Paulo: Editora Fiel, 2014. p 465